Poderia dizer que hoje, num sentido festivo, a palavra de ordem é: “Mar”.
Celebramos o Dia Europeu do Mar e o Dia da Marinha. Mais lá para o final do ano, em novembro, novamente iremos regressar ao mar, com o Dia Nacional do Mar.
Com comemorações diversas pelo país, a salientar a importância deste elemento na nossa história e na nossa identidade, o certo é que parte da alma do povo português é feita de mar.
Com ele mantemos, desde tempos remotos, uma forte ligação marcada pela coragem e bravura em vivências coletivas e, ainda assim, tão pessoais e tão particulares. Uma ligação única assinalada pela intuição nascida do olhar profundo com que abraçamos tal universo de grandiosa dimensão e personalidade indomável.
Há uma enraizada e incontestável sensação de magnetismo a pairar dentro de cada um de nós, quando estendemos o olhar sobre esse gigantesco horizonte. Um fascínio que nos prende o corpo e a alma a um histórico de imensa paixão e inquietação, um sentimento enigmático dividido entre o inconfessável apelo do místico chamamento e o perturbador desejo de ficar.
O mergulhar nas suas águas, o cheiro peculiar da vegetação próxima, o aroma fresco da brisa e das algas, o impulso das gaivotas pelo ar e o seu abandono livre no céu. Junto dele, como que esperando ouvir em surdina o poder mágico da sua voz, procuramos respostas para o sentido da vida e aperfeiçoamos a consciência da reduzida dimensão humana a que estamos sujeitos. Através do mar invade-nos um sentimento inexplicável de dualidade marcado pela nostalgia e arrebatamento, a convergência do instinto primário com um singular êxtase intuitivo.
Baudelaire não era português, mas tão bem soube dignificar este sentir humano, há mais de século e meio atrás, no seu poema O Homem e o Mar, quando clamou:
“Homme libre, toujours tu chériras la mer! La mer est ton miroir”.
Talvez porque não apenas para nós, mas para todos os homens com coração e aspirações, o mar será sempre um sinal de renovadas esperanças.
Pessoalmente, pouco conhecimento tenho sobre o mar, senão aquele que me desperta prazerosas lembranças da minha infância e adolescência ou me aviva agora os sentidos quando passeio à beira dele, todas as vezes em que disso sinto necessidade e o tempo me permite.
Impossível seria esquecer as tardes de verão vividas nas pequenas baías de águas transparentes e fino areal das margens do rio Mira, eternas vigilantes desse vasto oceano a tocar o coração de Vila Nova de Milfontes. A encantadora vila com cunho de princesa, adornada pela romântica fortaleza coberta de heras e porta armoriada transposta pela ponte levadiça, que num impulso constante se me fazia urgente fotografar.
Ou ainda aquela harmoniosa tranquilidade experimentada ao apreciar a dança carismática desse mar junto de Porto Covo, cercado por falésias, com a sua ilha salpicada de tons verdes e castanhos e o forte solitário a acenar-nos de longe. Também eles, fontes. Mas, então para mim, fontes de uma poética e fértil imaginação. E que, mesmo sabendo ali não existir qualquer pessegueiro plantado por um vizir de Odemira, como ditava a lenda pela voz apaixonada de Rui Veloso, não deixava de me animar líricas inspirações, tantas vezes, “olhando o mundo azul à minha frente/ouvindo um rouxinol nas redondezas/no calmo improviso do poente”.
Muito mais do que tudo isso, seriam e serão conhecedores do mar, os moradores destas duas terras de pescadores. A carregarem no suor da pele a acridez do sal e, dentro deles, como trémulas ondas, a agitação das fatídicas sombras da ausência e da saudade. Aqueles para quem as marés não são graciosas metáforas, mas emoções reais num quotidiano pautado pelo sacrifício, com o desejo de glória numa luta em pé de desigualdade.
A fazerem das coisas mais simples e banais da vida a alegria de cada dia, os homens do mar, nascidos no seio da humildade e sem privilégios, não possuem palavras que enriquecem patrimónios, não vislumbram ajudar outros a sonhar. Conhecem somente o duro valor do trabalho e crescem apenas para dentro de si próprios, interior de onde lhes emergem afetos com o mar, laços presos à ânsia de regressarem ao destino e aos abraços dos seus. É este o sentido mais íntimo das suas vidas.
Através deles, o oceano mostra-nos igualmente essa vulnerável paisagem humana em tons escuros, cujas únicas cores a sobressair são o verde e azul de um mar português revolto, confirmando os tão conhecidos versos de Pessoa, quando “Deus ao mar o perigo e o abismo deu/Mas nele é que espelhou o céu”.
No mar se descobre a vida e se encontra a morte. No final de todas as aventuras e sobre os areais que o contemplam, compreendemos a lição da nossa reduzida insignificância dentro da infinitude do cosmos.
Mas a grandeza do mar, essa permanece sempre.
“Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
A articulista actua como Colaboradora do Portal Elvasnews e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.