Não me recordo do dia exato. Sei que era manhã. Uma manhã que anunciava o sabor quente de dias de sol. E junto ao mar, a brisa tinha aquela doçura da primeira leveza de uma estação sempre bem-vinda, com esse profundo cheiro a algas e sal a invadir-nos por dentro. Há sensações que o tempo não apaga. E há imagens que a memória não esquece nos espaços interiores que nos habitam. Como aquela. A ambulância a chegar silenciosa, tão silenciosa como todos os olhares que para ela se voltaram inquiridores. Ambulância e silêncios, um paradoxo que o pensamento tem dificuldade em emoldurar.
Seria porque o instante fosse diferente, seria porque o cenário tinha uma magia capaz de contradizer as hipóteses mais óbvias, a verdade é que, apesar das certezas sobressaltadas dos presentes, o momento não parou nos gestos de quem passava. A vida urgia urgências por cumprir.
E ali, mesmo à beirinha do muro caiado de branco, naquela manhã de ameno sol, sobre a voz de um azul e verde-água vestidos de infinito, o jovem de corpo débil e rosto frágil, deitado numa maca e amparado pelos braços solidários de um bombeiro, levantou os olhos desmaiados para o horizonte à sua frente. Não sorriu. Não o conseguiria. Apenas… suspirou longamente.
Gostaria de acreditar, para alívio da minha consciência adormecida sobre um coração tantas vezes ingrato, que quase lhe senti o respirar das emoções que na alma se lhe despertaram. Emoções tão dele. Revelações tardias de obrigados que ficariam por dizer à vida. Ou talvez não… Talvez agradecimentos de despedidas e gestos não deixados por cumprir.
É nestes momentos, quando o destino nos obriga a presenciar o inesperado lado humano da humilde redenção, que deveríamos encontrar a oportunidade de compreender os que nos rodeiam, entrar-lhes nas veias, no sentir-lhes do mundo, para que todas as inseguranças que nos compõem pudessem servir de lição ao ego que julgamos, tantas vezes, engrandecer-nos.
E o que sentiria a mulher ao lado daquele jovem? A que, num gesto de amor, lhe segurava a mão. Mãe, esposa, irmã, amiga… Creio que o coração de qualquer uma delas certamente ditar-lhe-ia a mesma dor e, simultaneamente, o mesmo sorriso triste que lhe visitava o olhar.
E depois do adeus, a ambulância partiu novamente adormecida no mesmo silêncio com que chegara. O mundo, a vida… continuaram.
Não gosto da expressão “último adeus.” Se é um adeus, então é porque será sempre o último. Antes disso, há vida. E da vida só nos despedimos quando dizemos adeus. Adeus, simplesmente. Não haverá outro. Por isso, sempre preferi dizer “até já”. Até já, mesmo quando só volte a ver-te num dia sem tempo. Até já, mesmo que nunca mais. Porque desconheço o futuro. E ainda bem, não gostaria de sabê-lo. Não me pertence enquanto não me acontecer. E a acreditar que existe, dá-me sempre alento para todos os “até já” que me moram na esperança do peito.
Não sei da Fé dos Homens. Acredito que cada um tenha a força da sua. Eu tenho a minha que, nessa manhã de sol, me fez perceber definitivamente a importância do adeus. Continuo a duvidar que possa ser o último porque a vida continuou para mim. Mas a dele, daquele jovem, talvez tenha partido pouco depois.
Amparado pela sua fé. Com o mar dentro dos olhos… Para sempre.